contar o tempo

CONTAR O TEMPO

PROGRAMA DE CINEMA

Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema / exd '09

2 a 30 de Outubro de 2009


programa dedicado à memória de Raymonde Carasco


casting a glance, James Benning







SESSÃO 1
2 Out. 21h30

Brittanica de John Latham, 1971, 16mm, 6’
Spiral Jetty
de Robert Smithson, 1970, 16mm, 32’
Casting a Glance
de James Benning, 2007, 16mm, 80’

“O TEMPO É IRREAL como uma ideia real”, escreveu John Latham numa declaração que acompanhou uma projecção do filme. Muito do trabalho cinematográfico de Latham foi desenvolvido a partir de uma interrogação sobre o conceito de Tempo. Em Brittanica, Latham filmou toda a Enciclopédia Britânica a um fotograma por página: a história do conhecimento humano transformou-se num fluxo de imagens, pulsante e ilegível. A informação é igualmente uma preocupação central em Britannica: a nossa capacidade para ler e digerir o conhecimento armazenado numa enciclopédia de diversos volumes é desafiada pela aceleração do tempo precipitada pelo realizador.

Spiral Jetty, realizado por Robert Smithson, é um filme poético e processual e um “retrato” da Spiral Jetty, a sua famosa escultura estendida a partir da margem do Great Salt Lake no Utah. A voz em off de Smithson revela a evolução da Spiral Jetty. Sequências filmadas num museu de história natural são integradas no filme, mostrando relíquias pré-históricas que ilustram temas centrais do trabalho do artista. Uma secção de um minuto filmada por Nancy Holt, responde ao pedido de Smithson para que filmasse “a história da terra”. A ideia surgiu de uma citação que encontrou: “…a história da Terra assemelha-se por vezes a uma história escrita num livro cujas páginas foram arrancadas e rasgadas em pedaços. Muitas dessas páginas e alguns desses pedaços desapareceram…” (Thomas H. Clark, Colin W. Stearn, Geological Evolution of North America, New York, Ronald Press Co.) Smithson e Holt guiaram até ao topo do Great Notch Quarry em Nova Jersey. Smithson subiu até ao topo de onde atirou mãos-cheias de páginas rasgadas de livros e revistas enquanto Holt filmava.

casting a glance é um dos últimos filmes de James Benning e constitui uma dedicatória à Spiral Jetty, escultura que o realizador filmou várias vezes ao longo da sua carreira e que ocupa um lugar central no seu cinema e no modo como este se constitui numa reflexão acerca do espaço e do tempo.

Acerca de SPIRAL JETTY

“O filme começa como uma série de desconexões, um emaranhado de fragmentos estáveis com origem em coisas obscuras e fluidas, ingredientes captados numa sucessão de fotogramas, uma corrente de viscosidades ao mesmo tempo imóveis e em movimento. O montador do filme, dobrado sobre um tal caos de takes, assemelha-se a um paleontologista a tentar perceber as imagens de um mundo ainda disjunto, de uma Terra que ainda não o é, de um pedaço de tempo inacabado, um limbo sem espaço numas bobines espirais. Fitas de película penduradas na mesa do montador, pontas e pedaços do Utah, segmentos de filme sobre e sub-expostos, uma massa de material impenetrável. O sol, a espiral e o sal enterrados em comprimentos de imagem filmada. Tudo no cinema e no modo de fazer filmes é arcaico e rude. Somos transportados por este medium do período Arqueozóico para a primeira das eras geológicas conhecidas. A mesa de montagem transforma-se numa 'máquina do tempo' tornando camiões em dinossáurios. O filme recapitula a escala da Spiral Jetty. Elementos diversos ganham coerência. Lugares e coisas improváveis são enfiados entre as secções do filme que mostram uma extensão da estrada poeirenta que leva ao local exacto no Utah. Uma estrada que vai para cá e para lá entre coisas e lugares que estão noutro sítio. Pode mesmo dizer-se que a estrada não está em nenhum lugar em particular. A disjunção que opera entre a realidade e o filme, conduz-nos a uma sensação de ruptura cósmica. Enquanto observava o lugar, o horizonte reverberava, sugerindo um ciclone imóvel, enquanto a luz brilhante fazia a paisagem parecer um terramoto. Um terramoto adormecido espalhado na calma tremeluzente, numa sensação de vertigem sem movimento. Este local é uma rotação que contém em si mesmo uma extrema circularidade. Desse espaço a girar emergiu a possibilidade da Spiral Jetty. Nenhuma ideia, nenhum conceito, nenhum sistema, nenhuma estrutura, nenhuma abstracção se suportam na realidade dessa evidência. A minha dialéctica do lugar e do não-lugar rodopiou até um estado indeterminado, onde o líquido e o sólido se perderam um no outro. Era como se o lago se transformasse no limite do sol, uma curva incandescente, uma explosão a emergir numa proeminência ardente. Matéria em colapso no lago e espelhada na forma de uma espiral. Não vale a pena pensar em classificações e categorias, pois não existe nenhuma.“ (Robert Smithson)

Acerca de CASTING A GLANCE

“Para se ter a experiência da Jetty, temos de lá ir muitas vezes. É um barómetro dos ciclos diários e anuais. De manhã à noite, a sua aparência elusiva sempre em mudança (radical ou subtil) resulta da passagem de um sistema atmosférico ou simplesmente da mudança do ângulo do sol. A água pode parecer azul, vermelha, violeta, verde, castanha, prateada ou dourada. O som pode ser o de um barco da marinha, de gansos que passam, tempestades convergentes, de alguns grilos, ou ser um silêncio tão calmo que podemos ouvir o sangue a circular nas veias dos nossos ouvidos.” (James Benning)

“O retrato feito por James Benning deste conhecido trabalho de land art consiste em 78 planos de um minuto, filmados com uma câmara fixa em diversos momentos do ano e do dia. Adere de novo a um esquema rígido: cada uma das 16 sequências consiste em quatro ou cinco planos separados a negro. Estão marcadas com datas, dando-nos uma cronologia. O título do filme e a dedicatória – “em memória de Robert Smithson”, são seguidos por uma imagem da superfície do lago acompanhada pelo som de água. A água e o céu parecem fundir-se, a linha do horizonte é praticamente indiscernível. O título indica o ano em que a Spiral Jetty foi construída: 30 de Abril de 1970. Neste primeiro plano a Jetty aparece inteira com a linha costeira paralela à parte inferior da imagem e a escultura enrolada ao centro. A simetria e total visibilidade estabelecem uma visão perfeita da paisagem. Perspectivas posteriores oscilam permanentemente entre este conceito de perfeição e beleza e a sua destruição. A cronologia estabelece a história da Spiral Jetty como um flashback temporal num filme de ficção. Benning investigou meticulosamente a informação estatística e recorreu a diagramas dos níveis da água nos passados trinta anos anteriores para contar a história da mudança de visibilidade da Jetty. Esta narrativa histórica mais abrangente relaciona-se com a micro-história da investigação que Benning faz do local e da obra de arte durante as visitas que realizou de 2005 a 2007 – os últimos inserts indicam a data de 15 de Maio de 2007. As mudanças climáticas e geológicas ao nível da água são reflectidas conceptualmente nos ciclos diários e sazonais da Jetty durante as visitas de Benning ao local. Estas mudanças constantes são mostradas em vários planos, incluindo nos grandes planos dos cristais de sal e nos planos panorâmicos da costa. Os inserts constituem marcas geológicas, estabelecendo registos do lugar extraídos ao longo do tempo.” (Claudia Slanar, Lanscape, History and Romantic Allusions. El Valley Centro (1999) to RR (1998))


SESSÃO 2
7 Out. 22h00

La Région Centrale de Michael Snow, 1971, 16mm, 180’

Em La Région Centrale, Snow construiu uma câmara e um dispositivo especiais… um mecanismo capaz de se mover em todas as direcções: horizontalmente, verticalmente, lateralmente, ou em espiral. O filme é um movimento contínuo ao longo do espaço, interrompido ocasionalmente por um X que serve de ponto de referência e nos permite retomar a estabilidade da realidade. Snow escolheu filmar numa região deserta, sem qualquer rasto de vida humana… Nas primeiras imagens, a câmara destaca-se lentamente do chão num movimento circular. Progressivamente, o espaço fragmenta-se, a visão inverte-se em todos os sentidos, a luz abundante dissolve as aparências. Tornamo-nos cúmplices insensíveis de uma espécie de movimento cósmico… Catapulta-nos para o coração do mundo antes da linguagem, antes dos significados compostos arbitrariamente, antes mesmo do sujeito. Força-nos a repensar não só o cinema, mas o nosso universo. (Louis Marcourelles, Le Monde)

“A câmara é um instrumento que contém em si mesmo possibilidades expressivas. Quero fazer um enorme filme de paisagem que iguale no cinema a grande pintura paisagística de Cézanne, Poussin, Corot, Monet, Matisse e do Grupo dos Sete do Canadá… O local e a acção serão filmados em alturas diferentes do dia e em condições atmosféricas diversas, mas sempre na Primavera ou no Verão.
O filme constituirá uma espécie de registo total de uma porção de natureza inóspita. O efeito dos movimentos mecânicos [da câmara] serão idênticos ao que imagino possa parecer uma primeira filmagem rigorosa da superfície lunar. Mas vai assemelhar-se sobretudo a uma filmagem do último local intocado da Terra, um filme para se levar para o espaço como uma lembrança de como era a natureza. Quero transmitir uma sensação de solidão absoluta, uma espécie de “Adeus à Terra”, que é o que acredito estarmos a viver hoje. Em completa oposição ao que é transmitido pela maior parte dos filmes, este filme não vai apresentar apenas um drama humano, mas igualmente mecânico e natural. Vai preservar aquilo que será uma extrema raridade: um espaço selvagem. Talvez a solidão se torne também numa raridade.” (Michael Snow)

“Em diversas filosofias e religiões, encontramos muitas vezes a ideia e por vezes o dogma de que a transcendência é a fusão dos contrários. Em <---> é possível que esta fusão seja obtida através da velocidade. Já disse e volto a repetir que New York Eye and Ear Control corresponde à filosofia, Wavelength à metafísica e <---> à física. Através desta metáfora refiro-me à transformação da matéria em energia: E=mc2. Na continuação deste processo, La Région Centrale é simultaneamente micro e macro, cósmica e planetária, através da acção e da reacção. Está para além desses fenómenos. Este filme deve igualmente apresentar o diálogo mais claro possível entre o que identificamos habitualmente como “o céu” e o efeito físico e real da imagem-luz projectada em movimento no olho e na imaginação. La Région (central) não é apenas um documentário que regista um lugar específico em diferentes momentos do dia, mas é também e sobretudo uma fonte de sensações, uma ordenação, uma composição dos movimentos do olho e do ouvido interno. Assim, o filme começa por respeitar a gravidade, mas quanto mais avança, mais corresponde ao que se veria noutro planeta. O alto baixa o alto, o baixo eleva o baixo, o alto eleva o alto (…). Não há mais ninguém a não ser o espectador (talvez a máquina?) e esse extraordinário lugar selvagem. O enquadramento como uma pálpebra. Pode parecer triste constatar que uma forma para poder existir deve ter fronteiras, limites, um lugar, uma mise-en-scène. O conteúdo do rectângulo pode ser precisamente isso. Em La Région Centrale o enquadramento sublinha a continuidade admirável mas trágica do cosmos, que progride sem nós.” (Michael Snow)



SESSÃO 3
9 Out. 22h00

A Erupção da Ilha do Fogo de Orlando Ribeiro, 1951, 16mm, 20'
Tudzhi [A Fornalha] de Otar Iosseliani, 1964, 35mm, 20’
Les Rendez-vous du Diable de Haroun Tazieff, 1959, 35mm, 80’

Uma sessão que parte do fogo, da relação deste com os homens, a tradição e o trabalho. O filme do geólogo português Orlando Ribeiro é uma observação da actividade do vulcão da Ilha do Fogo em Cabo Verde em 1951. Desenhos, estudos, imagens do vulcão, da paisagem de lava solidificada e da população que aí habita e das correntes de lava incandescente que iluminam a noite.
A Fornalha de Iosseliani parte da relação dos homens com o trabalho do fogo - a vida numa fundição na cidade Georgiana de Rustavi. O horário de trabalho é intenso e inflexível. No meio da exaustão diária, sobra um tempo especial para os trabalhadores. Durante a sua pausa, cozinham numa placa de ferro aquecida. Durante este tempo, ignoram os heróis da classe operária mencionados pelo regime. Esta experiência comunal transcende os limites das duras condições na forja. Os mundos do cinema e da metalurgia experienciam uma relação de cordata solidariedade.
Les Rendez-vous du Diable é uma viagem e aventura cinematográfica do geólogo e vulcanólogo Haroun Tazieff através das crateras em actividade de inúmeros vulcões na Europa, Indonésia, Japão, América Central e do Sul. Procurando aproximar-se das crateras, apesar dos perigos e riscos constantes, o filme mergulha-nos no coração das erupções.
Acerca de LES RENDEZ-VOUS DU DIABLE

“Foi a primeira vez que Tazieff manejou uma câmara de 35mm. Mas graças ao seu sentido cinematográfico, diríamos que nunca fez mais nada na vida. Teve a ajuda, em Bali, do indonésio Wanwo Runtu, e mais tarde de um amigo, Pierre Bichet, um pintor que o acompanhou fielmente na sua "viagem pelos vulcões"; por fim, um operador de câmara profissional italiano, Aldo Scavarda, após alguns dias de adaptação às condições de rodagem diferentes de uma filmagem em estúdio, acompanhou-os ao Etna, ao Stromboli, Vulcado e ao Vesúvio. Regressado em 1957 com quilómetros e quilómetros de película, Tazieff apercebeu-se, durante a montagem, que lhe faltavam planos e mesmo sequências inteiras: partiu novamente para o Kilimanjaro, o Etna, o Stromboli e o Vesúvio para filmar planos de raccord. Foi então que se deu a erupção dos Açores, fornecendo as últimas sequências do filme, que lhe permitem terminar com uma apoteose. O filme segue quase exclusivamente o itinerário real dos exploradores, e a sua curva dramática não deixa de se acentuar, começando com um vulcão de aspecto inofensivo e terminando por um paroxismo aterrador de forças rompantes, incontroláveis.” (Michèle Firk, Haroun Tazieff)

"Diria aliás sem problemas, que Les Rendez-vous du Diable é um belo filme, porque é um filme. Ao filmar-se em perigo de morte face aos jactos de lava, Tazieff prova o cinema, se é que o posso dizer desta forma, apenas pelo facto de que essa aventura perderia todo o interesse se não existisse o filme, já que ninguém, sem ser Tazieff, saberia que ela aconteceu desta maneira. Assim, o que é belo é esse desejo desmesurado de objectivação, essa vontade aguerrida que Tazieff partilha com um Cartier-Bresson ou com o Sucksdorff de A Grande Aventura, essa necessidade interior profunda que os levou a querer autenticar a ficção contra ventos e marés, através do realismo da imagem fotográfica. Substitua-se agora a palavra ficção por fantástico. Isso leva-nos a uma das reflexões-chave de André Bazin no primeiro capítulo de "O que é o cinema", às suas reflexões consagradas à "Ontologia da Imagem Cinematográfica", nas quais parece remeter sem cessar à análise de um qualquer plano de Les Rendez-vous du Diable. Haroun Tazieff não o sabia, mas comprovou que Bazin estava correcto ao escrever: "apenas a câmara possui um 'abre-te sésamo' desse universo em que a beleza suprema se identifica quer com a natureza quer com o acaso." Se Haroun Tazieff comprovasse apenas que a natureza é uma grande realizadora, o seu filme não seria melhor que os de Joris Ivens. Pelo contrário, o que há de prodigioso em Les Rendez-vous du Diable, é que ao mostrar a erupção submarina do vulcão dos Açores, dotada de uma tal riqueza de formas que apenas Tintoretto a ousara pintar: ao mostrar-nos um rio de lava a contorcer-se num fervilhar púrpura e ouro, cores que Eisenstein apenas ousara utilizar na cena do banquete em Ivan, o Terrível; ao mostrar-nos, digo, todos esses prodígios de mise-en-scène, Haroun Tazieff, ipso facto, prova-nos que a mise-en-scène é uma coisa prodigiosa." (Jean-Luc Godard, Le Conquérant Solitaire)


SESSÃO 4
13 Out. 19h30


Tutuguri - Tarahumaras 79 de Raymonde Carasco e Régis Hebraud

Eksopramatikò e Balamos de Stavros Tornes


Tutuguri – Tarahumaras 79 de Raymonde Carasco e Régis Hébraud, 1980, 16mm, 25’
Eksopragmatikò [Fora da Realidade], de Stavros Tornes, 1979, 16mm (filmado em Super 8), 40’
Argumento: Stavros Tornes, Charlotte van Gelder; Imagem: Stavros Tornes; Montagem: Stavros Tornes, Charlotte van Gelder; Som: Nico d'Alessandria; Música: Charlotte van Gelder
com: Pupo, Caterina, Charlotte, Massimo, Nando, Otello
Balamos de Stavros Tornes, 1982, 35mm (filmado em 16mm), 82’
Argumento: Stavros Tornes; Montagem: Dimos Theos; Som: Manolis Logiadis; Direcção Artística: Dimitris Kakoulides; Colaboração Artística: Charlotte van Gelder
com: Stavros Tornes, Kyriakos Vilanakis, Eleni Maniati, Mitsos Aggelakopoulos, Entzo Attingenti, Constantinos Pagkalos, Christos Karagougas, Salim Salil, Brairam Ali

Tutuguri - Tarahumaras 79 foi filmado no Verão de 1979. Repete o ritual do Tutuguri, cantado e dançado seis vezes por Tranquilino, o Saweame, num tempo breve, rigorosamente preciso (um minuto e quarenta e cinco segundos). Palavras secretas de que apenas emergem as vogais - a dança constrói um espaço sagrado entre os quatro pontos cardeais de uma cruz, signo negro e pagão. Rito solar e nativo, anterior à conquista espanhola. A montagem é feita de um só plano entre os pólos concretos do tempo real e de um espaço-tempo dilatado e a partir de um material duplo: Tutuguri e Carreras (as corridas dos homens, "com bola" e das mulheres "com aro", específicas ao povo Tarahumara, que a etimologia declara como os dos "pés que correm").

"Stavros Tornes nasceu em Atenas, num bairro de refugiados da Ásia Menor (tal como a sua família). Tinha quatro anos durante a ditadura de Metaxas, doze no início da guerra civil e dezassete no fim da guerra. Na altura em que frequentava a escola de cinema, trabalhando em inúmeros empregos para ganhar a vida, partiu para o exílio perante a imposição da ditadura da junta militar a 21 de Abril de 1967. Instalou-se em Itália onde encontrou Charlotte van Gelder; juntos filmam Addio Anatolia, depois Coatti, a sua primeira longa metragem e Eksopragmatikò. É com a sua companheira que regressa à Grécia socialista em 1981. Tornes quer filmar um documentário sobre um mercado de venda de cavalos em Tessália. Em 1982, começa a rodagem, mas rapidamente muda o argumento, desenvolve-o e acaba por realizar Balamos: um road movie filmado nas montanhas, um filme que dá a ver e ouvir com límpida clareza que o mundo é um enquadramento e que o enquadramento é o mundo. Fiel às suas escolhas, continua nos seus filmes seguintes, Karkalou, Danilo Treles e Un héron en Allemagne a defender um cinema profundamente humano, antropológico, que trabalha a realidade ao mesmo tempo que o mito. Num desfecho, Tornes faleceu um ano depois do seu último filme." (Stavros Kaplanidis, realizador de Stavros Tornes: O Caçador Pobre do Sul, 1994)

Acerca de TUTUGURI - TARAHUMARAS 79

"Raymonde Carasco não convoca os textos de Antonin Artaud para sublinhar o seu próprio trabalho de descoberta. As provas de uma experiência estão no ecrã, mas temos ainda de refazer a 'Viagem ao País dos Tarahumaras' do escritor, para as identificar. Fragmentos dos textos de Antonin Artaud são lidos em voz off nos filmes Tutuguri, Los Pascoleros, Ciguri, Le Dernier Chaman, mas a maior parte das relações a partir das quais podiam proceder os filmes, são evitadas, escondidas e reinvestidas numa estrutura que se encontra na intersecção entre a ciência e a poesia (como essas construções que um dia descobrimos servirem para observar as constelações). Em Tutuguri, os fragmentos do poema designam o ritual descoberto para dispor os mistérios e comprovar o facto do filme ser construído de acordo com eles. Em torno da dança e do canto do Tutuguri circulam diversos motivos ou temas (a caminhada, o jogo, perante o olhar dos espectadores Tarahumaras, uma corrida na noite, um tocador de violino, o tronco de uma árvore)." (David Matarasso, Les films ethnologiques de Raymonde Carasco)

Acerca de EKSOPRAGMATIKÒ

Eksopramatikò – que significa estar fora da realidade – podia ter sido filmado pelo poeta austríaco Georg Trakl, um dos grandes montadores da história do cinema: sem câmara ou mesa de montagem, numa série de escritos, conseguiu que imagens de sentidos diversos se anulassem, conduzindo-as a um centro puro de afectos. Não obstante Stavros ser oriental, com o seu olhar duro como uma rocha apesar disso amaciada sob a luz quente, ele seguiu temperamentalmente o mesmo caminho: fragmentos ópticos dispersos reúnem-se com intensidade, criando uma espécie de lamento. Cenas da cidade e dos seus habitantes a juntar-se para assistir a um incêndio que rompe como uma língua pelas janelas de um edifício, enquanto, noutro local, um homem contra a luz do sol, apanha um comboio, sorri para a câmara e chega ao Etna, aí onde a cratera está em suspensão. Imagens filmadas em Super 8, com o tremer da mão a agitar os limites do enquadramento, parecem formar uma ponte sobre um pequeno barco que atravessa um largo rio (o tempo), com os amigos de Tornes sentados na proa: Massimo, Caterina, Nando, e especialmente Charlotte, a companheira do realizador e co-autora de todos os seus filmes, que arranha a banda Sonora com o seu violoncelo. Para além, disso o filme é como uma ponte suspensa unindo Tornes e a Grécia (à qual regressará algum tempo depois), depois de um período político intenso em Itália, onde trabalhou como actor em filmes dos irmãos Taviani, Francesco Rosi e Federico Fellini, mas onde, de modo mais importante, forjou um estilo cinematográfico pessoal (Estudantes – hoje perdido -, Addio Anatolia, Coatti, Eksopragmatikò), quase primitivo. (Constantinos Hadzinikolaou)

"Imaginem uma montagem alternada, mantida durante muito tempo. De um lado, o matraquear regular de um barco a motor. Um jovem casal a bordo, em roupa de Verão, turistas nórdicos que vagueiam. Planos fechados neles, planos abertos e doces da margem. Mergulhamos numa espécie de floresta virgem verdejante. Impressão de bem-estar. "Fora do concreto" ou "fora do real". Mas é filmado na natureza, sem qualquer intervenção exterior. A realidade dá aqui uma volta singular, como se progredíssemos aqui e ali num mundo desconhecido. Mostra-nos que há dois modos de estar no mundo, de efectuar a viagem ou o trajecto da existência. Durante a alternância entre os dois, ao longo do filme inteiro, não cessa de questionar (qual o lugar entre uns e outros? Alguma vez se encontrarão?) e de acrescentar uma estranheza, um mistério." (Fabrice Revault)

Acerca de BALAMOS

"Queria comprar um cavalo que me conduzisse a locais difíceis de alcançar pelo Homem. Entrei em contacto com o mundo dos comerciantes de cavalos e com Kyriakos que me conduziu a lugares para onde não é fácil transportar uma câmara. Nasceu assim a personagem de Balamos, um homem em constante viagem e que se extasia perante o mundo. Caminha sem objectivo definido, à aventura, mergulhado no seu sonho, dando-se às situações que se apresentam. Não comprei um cavalo. Comecei o filme com esse desejo sempre vivo de um cavalo" (Stavros Tornes)

"Alguém quer comprar um cavalo: deambula pelo campo grego como um sonâmbulo. É Balamos, e dá o título ao filme: aquele que vive na ficção e atinge o seu êxtase na viagem. Em busca do cavalo, caminha através das estações anti-naturalmente, juntando (e abrindo) grandes interstícios temporais. Das entranhas da aldeia, de noite, para o camião, começa a seguir o motorista, que lhe conta histórias e o conduz a um mercado de cavalos. Nunca ninguém filmou o olho de um cavalo, ou um cavalo como fez Tornes. Não se trata de representação, mas de algo irradiante! O cavalo vem directamente da Antiguidade, com tamanha brancura, sem mácula das esporas. E o olho é opaco, com a escuridão inequívoca de um tinteiro, ainda mais vertiginosa que o olho golpeado em Un Chien Andalou de Buñuel (um cineasta que Tornes admirava). “Depois olhámos-nos nos olhos e vi como se olhasse para um espelho mágico. Através da densa luminosidade da pupila do olho desfilam imagens como relâmpagos em ondas sucessivas.”, escreveu Tornes num esboço do argumento. Da Idade Média, Balamos salta para o primeiro período do Cristianismo – como um escravo que se revolta –, encontra a Vidente e a profeta, vai ao Olimpo e transforma-se num príncipe que bebe o sangue dos cavalos. Regressa à cidade de táxi. Neste caso, o termo flashback não faz sentido, porque Balamos decorre num tempo que é só seu, criando em vez disso espaços que não estão associados por uma coladeira mas pela terra. É uma montagem feita de lama e alguém pode perguntar: “Mas quem é este que conseguiu fazer com que estes materiais funcionassem com tamanha força dando ao mesmo tempo a impressão de que a estrutura vai desabar?” Para além disso não é tanto a associação, mas sobretudo o corte entre os planos, tão profundo, como se fosse feito por um machado. O mesmo acontece na banda sonora: a roda a crepitar, o coaxar do sapo, o vento e o voo dos pássaros ao amanhecer, fundem-se num zumbido electrónico em bruto que vem do além. Quando Stavros Tornes regressou à Grécia depois de um exílio auto-imposto em Itália (1967-1982), filmou para a televisão grega o documentário de meia hora Reportagem Imaginária para um Cavalo de Tessalónica – que já não existe. Ao perseguir uma prática inédita para a tacanhez do seu tempo, ele adiciona novas imagens às já existentes e desenvolve uma nova ideia: Balamos foi feito com um orçamento mínimo. A sua deambulação, no entanto, é interrompida prematuramente. Depois de mais três filmes de ficção – Karkalou, Danilo Treles (o famoso músico Andaluz) e Un héron en Allemagne – faleceu em 1988, aos 56 anos; no fim, como uma raposa, lambeu as suas feridas e evaporou-se." (Constantinos Hadzinikolaou)


SESSÃO 5
15 Out. 21h30

L'Itinéraire de Jean Bricard, Jean-Marie Straub, Danièle Huillet

Am Siel de Peter Nestler, 1962, 16mm, 13'
L'Itinéraire de Jean Bricard de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, 2008, 35mm, 40'


A banda sonora de Am Siel é um monólogo lido por Robert Wolfgang Schnell. A sua voz fala em defesa da paisagem. Palavras expressas por um dique num rio são sobrepostas a imagens de uma vila piscatória desolada na costa da Frízia Este: Ich bin ein alters Siel an dessen Ende ein Dorf liegt. O canal conta a sua história de modo poético enquanto observa os habitantes da aldeia. As imagens conduzem-nos do rio para a aldeia, mostram-nos as pessoas, os pescadores e os seus barcos, o bar local, e regressam uma vez mais ao rio. Ao utilizar um movimento de câmara idêntico, o começo e o fim deste filme estão ligados como num ciclo, enfatizando o aspecto intemporal da paisagem.

Jean Bricard nasceu em 1932 em Basse-Pierre, no Loire. Antes de se reformar em 1992, foi responsável por uma empresa de extracção de areia na Ilha Verte, face a Ancenis (no Loire Atlântico). L'Itinéraire de Jean Bricard foi filmado no dia 24 de Fevereiro de 1994, depois de duas entrevistas sobre a história da sua vida publicadas por Jean-Yves Petiteau, investigador no CNRS, na revista da École de Beaux-Arts de Nantes, Interlope la curieuse, n.º 9-10, Junho de 1994. L'Itinéraire de Jean Bricard é um documento, uma reflexão sobre o território, uma lição de História e uma história de fantasmas... O cinema, como alguém disse, é a última forma de história oral e este filme toma isso literalmente. Numa ilha no Loire existiu outrora vida, pessoas que trabalhavam, resistiram, produziram vinho e viveram do rio. O filme é um testemunho terno daquilo que ainda há para ver e para experimentar, e acerca do modo como o espaço se transforma em tempo.



"Chegámos a Ilha de Coton, onde passei a minha juventude. Vivíamos em Basse-Pierre. Havia um porto em Basse-Pierre. Era o porto de Basse-Pierre, mas isso foi há séculos. Existia um armazém para os cereais e para o vinho. O Butte de la Pierre estava plantado a 90% com vinhas. O vinho era transportado de barco. No Inverno tínhamos barcos, mas no Verão, quando não havia água suficiente para chegar a qualquer uma das margens, íamos a pé por um baixio, como aquele que vocês têm em Oudon e Saint-Florent. Havia vários, na diagonal. Os baixios tinham habitualmente dois a três quilómetros de comprimento. Um deles ia para Basse-Pierre desde o castelo de Ancenis. Foram parcialmente demolidos para o canal. Eu conhecia este baixio, depois demoliram-no. Vêem, eu vivia ali. Nesse ano havia quarenta centímetros de água na casa. Depois havia juncos, em que nos podíamos esconder durante a guerra de 43-44, para evitar ser capturados pelos alemães. Em 1944, no ano em que o meu tio foi apanhado... O meu tio foi apanhado porque durante três semanas tivemos os americanos em Ancenis. O Loire era a fronteira. Os alemães estavam aqui na margem esquerda. O que tornava as coisas difíceis. Algumas pessoas foram apanhadas a atravessar o Loire de barco, porque à noite usavam barcos a remos para chegar aos americanos. De facto, vamos ver a cruz. O Christophe é o vizinho sem trabalho, por isso vem dar-me uma ajuda. Vamos ver a cabana onde nos podemos recolher quando chove mesmo a sério. Quando tínhamos uma hora ou duas trabalhávamos na quinta. Mas sempre que havia uma oportunidade para sair durante um dia, ou meio-dia, vínhamos à ilha." (Do comentário do filme)



SESSÃO 6

16 Out. 19h30

La Rosière de Pessac '79 de Jean Eustache, 1979, 16mm, 55'
La Rosière de Pessac de Jean Eustache, 1968, 16mm, 55'

Em La Rosière de Pessac, Jean Eustache regressa ao local da sua infância para realizar uma reportagem sobre a eleição da 72ª donzela de Pessac. O prémio recompensa as qualidades morais e os méritos de uma jovem rapariga. Jean Eustache escreveu sobre o filme: “Tomo a tradição tal como ela é, e filmo-a respeitando-a totalmente. (…) Talvez tenha um ponto de vista apesar de tudo, mas o que posso dizer em todo o caso é que não existiu qualquer intenção em La Rosière de Pessac, nem moral, nem crítica.” (Cahiers du cinéma, n.º 306) La Rosière de Pessac 79 mostra a mesma eleição da donzela de Pessac, onze anos mais tarde: “Gostava que os dois filme fossem mostrados juntos: primeiro o de 79 e depois o de 68. Uma forma de dizer às pessoas: se têm vontade de ver como tudo se passava, fiquem, pois irão ver.” (Jean Eustache)

“Veja-se, por exemplo, em La Rosière de Pessac (na primeira versão de 1968). É uma cerimónia tradicional, sobrevivente do século dezanove e que ainda se celebrava, se bem que com um certo distanciamento bem humorada. Eustache capta o ritual dessa festa segundo o princípio de cinéma-vérité muito em voga nessa altura, mas seguindo as regras do cinema etnográfico estabelecidas por Jean Rouch, vinte anos antes. Aqui, procura-se respeitar escrupulosamente o desenrolar de uma mise-en-scène há muito estabelecida - inventar um dispositivo (como colocar as luzes, a posição exacta dos microfones, os movimentos do operador e da sua câmara, etc) que permita apagar todas as marcas desse trabalho técnico. Nada conta a não ser a realidade humana, as relações emocionais dos indivíduos que se dão a um jogo de sociedade. Dez anos mais tarde, em 1979, Jean Eustache regressou a Pessac e retomou o seu sistema de captação, obtendo uma verdade sociológica diferente, com a alteração radical dos tempos, das mentalidades e dos interesses. A mesma cerimónia não é mais do que um simulacro, revelador da modificação das mentalidades e dos costumes. “ (Jean Douchet)



SESSÃO 7
20 Out. 19h30

Mühlheim (Ruhr), Peter Nestler

Die Nordkalotte, Peter Nestler

Am Siel de Peter Nestler (em colaboração com Kurt Urlich), 1962, 16mm, 13'
Mühlheim (Ruhr) de Peter Nestler (em colaboração com Reinald Schnell), 1964, 16mm, 16'
Väntan [A Espera] de Peter Nestler, 1985, 16mm, 6'
Die Nordkalotte [A Calota Polar] de Peter Nestler, 1990, 16mm, 90'

A banda sonora de Am Siel é um monólogo lido por Robert Wolfgang Schnell. A sua voz fala em defesa da paisagem. Palavras expressas por um dique num rio são sobrepostas a imagens de uma vila piscatória desolada na costa da Frízia Este. Ich bin ein alters Siel an dessen Ende ein Dorf liegt (Sou um velho dique no fundo do qual fica uma aldeia). O canal conta a sua história de modo poético enquanto observa os habitantes da aldeia. As imagens conduzem-nos do rio para a aldeia, mostram-nos as pessoas, os pescadores e os seus barcos, o bar local, e regressam uma vez mais ao rio. Ao utilizar um movimento de câmara idêntico, o começo e o fim deste filme estão ligados como num ciclo, enfatizando o aspecto intemporal da paisagem.

Mühlheim (Ruhr) foi filmado na bacia do Ruhr, na Alemanha, onde a industrialização (as minas e a indústria do aço) deram origem à formação de grandes cidades com tudo o resto à sua volta. As municipalidades da área não são mais do que conglomerados das aldeias outrora existentes. No entanto, com a chegada do “Wirtschaftswunder”, o boom económico dos anos 50 e 60, os políticos começaram a sentir a necessidade de transformar as suas municipalidades em cidades. Com o pretexto do planeamento urbano, as estruturas próximas das pessoas que aí residiam foram destruídas para dar lugar a estruturas mais próxima do capital. Isto aconteceu em cidades mineiras como Mühlheim, onde se extraia o carvão e o ferro. […] O filme é hoje um documento histórico porque muito daquilo que nos mostra já mudou ou foi insidiosamente destruído e já não existe. Os aglomerados habitacionais foram desmantelados e vendidos e as pessoas partiram por já não haver trabalho. As primeiras minas no Ruhrgebiet foram encerradas em 1958 / 59. Em 1964, quando este filme foi feito, muitos operários trabalhavam já nas linhas de montagem de automóveis. Nas cidades foram construídos novos edifícios de escritórios e apartamentos. Isto é-nos mostrado no início do filme, montado numa rápida sucessão, e no entanto, o filme é mais do que apenas imagens de construção. […] Ao assistir ao filme, torna-se evidente como é que este se construiu, à medida que Nestler se movimenta pela cidade de Mühlheim. O filme consiste naquilo que ele observou na cidade. As minas, as pilhas de carvão, as torres de arrefecimento, as casas dos operários, os bares e as pessoas. Nesses momentos, o filme é muito calmo, podemos sentir a sua poesia e também que tudo está interligado. O filme mostra igualmente o que está nos extremos, onde e como vivem as pessoas, como trabalham e para quem o fazem.

Väntan de Peter Nestler

Jorg Hüber escreveu sobre Väntan (A Espera): "Depois da Segunda Guerra Mundial, a televisão sueca comprou um extenso arquivo fotográfico em Berlim. Como parte de medidas de austeridade financeira, o arquivo foi dissolvido e vendido em 1985. Para o evitar e para mostrar o valor deste documento histórico, Peter Nestler realizou Väntan, compilação de imagens de arquivo de um desastre ocorrido nos anos 30 numa mina da Silésia. Desta compilação de fotografias e de reportagens de jornal, emerge uma imagem do incidente, das condições sociais, da situação laboral dos mineiros, da negligência das precauções de segurança e da repressão dos trabalhadores em geral." Wilhelm Roth recorda que os Nazis ascenderam ao poder três anos após o acidente retratado neste filme de Peter Nestler, sublinhando a sua dimensão de protesto político contra a industrialização e os seus poderes destruidores.

Nos anos 90, Peter Nestler prosseguiu o seu trabalho de documentação cinematográfica sobre o trabalho, as consequências das profundas transformações económicas e sociais provocadas pela industrialização e pela exploração dos recursos humanos e ambientais com duas obras-primas, dois filmes de viagem, Pachamama - A Nossa Terra, filmado no Equador e este magnífico Die Nordkalotte, filmado no Norte da Europa. Depois da explosão do reactor de Chernobyl, a suas nuvens nucleares atingiram o norte da Europa. As vítimas do acidente foram sobretudo os Lapões. As suas manadas de veados sofreram com as consequências e muitos animais tiveram de ser abatidos. Foram feitas algumas reportagens sobre esta tragédia que atingiu o último povo da natureza na Europa. No seu filme Die Nordkalotte, Peter Nestler, descreve a sobrevivência cultural dos 30.000 Sami, o maior grupo étnico que vive no norte da Noruega. Os Lapões também vivem no norte da Suécia, no norte da Finlândia e na península ex-soviética de Kola. O filme de Nestler é um estudo sensível dos costumes arcaicos dos Sami, um testamento a uma paisagem árida, ainda que bela, e finalmente um protesto contra a sociedade industrial que cobre esta região remota do norte da Europa com grandes projectos, sacrificando ao lucro o seu equilíbrio ambiental. No início do século, os Sami eram quase todos famílias nómadas. Viviam da criação de veados, da caça, da pesca e do comércio. Hoje todos têm de se submeter cada vez mais aos constrangimentos que lhes são impostos, à destruição dos seus habitats naturais, ao controle das autoridades e das cidades e à pressão das populações com quem competem e que consideram os Lapões como inferiores e incapazes. Neste documentário, Nestler enfatiza o conhecimento que os Sami possuem da natureza, não para a dominar, mas para viver com ela numa harmonia espiritual. Os povos da Lapónia não exploram a natureza com a extracção do minério, da madeira ou desviando rios e lagos. Em vez disso aprenderam a viver com a aridez do local e com o clima do círculo Ártico.