SESSÃO 8
21 Out. 22h00


Sen nen kizami no hidekei: Maginomura monogatari [A Aldeia de Magino: Um Conto] de Ogawa Shinsuke, 1986, 16mm, 222'

Esta é a obra-prima das Produções Ogawa e resulta de um trabalho de treze anos. Poucos filmes - em qualquer lugar ou tempo - retrataram a história com tal complexidade. As tradições orais que circulam na aldeia de Magino ao longo de gerações são transmitidas através de contos, dança butô e recriações ficcionais. Estas últimas misturam actores conhecidos com os aldeões que vestem os papéis dos seus antepassados. Os realizadores exploraram os recantos profundos da história da aldeia fazendo uma escavação arqueológica nos campos de arroz. Esta abordagem científica contribui com uma perspectiva que evita de algum modo a desmistificação distanciada das dimensões folclóricas e espirituais da vida na aldeia. A microscopia científica do crescimento do arroz suscita admiração e quando vemos aparecer os cientistas a explicar as origens prováveis de uma dada história, estes vêm sobretudo corroborar o que há de real na história viva da aldeia de Magino. Todo este filme, soberbamente complexo, é marcado pelo ritmo das colheitas sazonais e pelo arco solar que atravessa o vasto céu de Yamagata.

Acerca de A ALDEIA DE MAGINO: UM CONTO

“(…) Este movimento fluido entre o passado e o presente é uma estrutura que se repete em quase todas as sequências do filme. Lembro-me de poucos filmes onde a noção de história seja complexificada a este ponto; vemos a concorrência entre o conhecimento produzido pelas histórias e pelas ciências sociais, os registos escritos da herança da aldeia, os contos orais transmitidos entre gerações, bem como fragmentos de história que nos chegam dos confins da experiência humana. Tudo isto é marcado por esse movimento em arco do sol através do céu e dos ciclos das colheitas do arroz que regeram a vida das populações ao longo dos tempos. O que é mesmo extraordinário é o sentimento com que se apresenta uma história que talvez não faça qualquer sentido em Tóquio, Ann Arbor ou Berlim, um sentimento da história enquanto algo que não é ressuscitado do passado, mas sim palpável e vivo no presente. O instrumento mais poderoso utilizado por Ogawa para este fim é a performance e a reconstituição mimética. (…) Com o seu intenso escrutínio documental do crescimento do arroz e da exploração arqueológica, surgem pequenas narrativas episódicas que muitas vezes põem lado a lado actores profissionais e os aldeões a desempenhar o papel dos seus antepassados. Desta forma, o conhecimento incorporado por estes aldeões torna-se visível; as memórias pessoais e colectivas obtêm uma forma concreta. Esta aproximação mimética constitui mais uma contribuição inovadora para o conhecimento. Estas são histórias que circularam entre os membros desta pequena aldeia ao longo da sua história e que podem ser recentes, apenas com uma geração ou mesmo ter séculos de existência. Para além disso, o tratamento do tempo nestas narrativas é incrivelmente complexo e é muitas vezes sustentado pela aura dos objectos que permitem ligeiros deslizes temporais." (Abé Mark Nornes, Forest of Pressure, Ogawa Shinsuke and Postwar Japanese Documentary)


SESSÃO 9
23 Out. 19h30


Farewell Topsails de Humphrey Jennings, 1937, 35mm, 9’
Les voitures d’eau de Pierre Perrault, 1968, 35mm, 110’

Humphrey Jennings realizou Farewell Topsails para a Companhia Adrian Klein / Dufay-Chromex – é uma das três curtas-metragens realizadas com o objectivo de demonstrar o novo processo cromático então em desenvolvimento (as outras duas eram vistas da vida rural inglesa). Montado ao som alegre de um acordeão de um marinheiro e filmado sob a luz brilhante de um dia de Verão em 1937, o filme regista uma das últimas viagens de uma escuna comercial a transportar uma carga de caulino numa viagem desde a Cornualha. Há pouco de pessoal neste curto filme, a não ser uma aproximação a um dos grandes temas da obra de Jennings: o registo da passagem de um antigo modo tecnológico para o modo industrial - algo que constituiria o tema da obra inacabada do realizador, Pandaemonium, uma antologia de escritos sobre a Revolução Industrial.

Terceira longa metragem de Pierre Perrault na Ilha de Coudres, Les Voitures d'eau aborda o problema dos construtores e navegadores de escunas de madeira, com a chegada dos barcos de ferro, da concorrência internacional e dos monopólios. Homens do mar, tão hábeis nos actos quanto nas palavras, os capitães das últimas escunas do rio, vivem o fim de uma era artesanal na qual os seus filhos dificilmente encontrarão um lugar. A primeira parte do filme teoriza os conhecimentos e as riquezas humanas e verbais ligadas à ciência dos barcos de madeira. A segunda parte, resultado de um ano trágico de navegação do St. Laurence, coloca questões maiores de integração económica e política dos Canadianos franceses.

Se tivesse uma sugestão para dar um nome ao teu filme, sugeria que lhe chamasses: A AGONIA DAS ESCUNAS: uma agonia prolongada, como se pode dizer… Persistimos para que durem tanto tempo quanto possível, mas é um esforço sobre-humano aquele que fazemos, com todos os inconvenientes de hoje em dia, com todas as misérias, com a concorrência dos transportes terrestres, AS GREVES! uma depois da outra! são todos esses inconvenientes que conduzem… à idade das nossas velhas escunas e depois não se construirão outras! quer dizer… a Montcalm, que é parecida com a minha! têm a mesma idade; é mesmo mais velha que a minha! vão restar três, quatro que vão sobreviver porque foram construídas uma dezena de anos depois das outras, vão sobreviver se conseguirem… vão permanecer boas mas…se lhes resta trabalho, é trabalho que desaparece: não podemos concorrer com os grandes barcos.” (Dos diálogos do filme)

“Este filme constitui o terceiro volume do tríptico composto por Pour la suite du monde e por Régne du Jour. Mas é-o apenas na aparência: no fundo estes três filmes relevam de uma mesma visão do poeta. Les Voitures d'eau em particular é a conclusão de um longo trabalho de selecção e de montagem (o filme terminado não representa mais do que vinte por cento do que foi filmado): a partir de numerosas bobines consagradas aos construtores de escunas de madeira (goélette de bois), Perrault fez um poema didáctico e elegíaco, à semelhança das Geórgicas ou das Bucólicas de Virgílio. Perrault assemelha-se de resto a Vírgilio de outra forma: o mundo que ele fixa em película - com a mesma paciência e impaciência com que os pintores egípcios de há três mil anos o fixavam nos painéis castanhos das mastabas -, é uma imensidão que morre. Os protagonistas do filme - Éloi, Laurent - aspiram à reforma, onde se irão juntar aos heróis já míticos dos primeiros filmes de Perrault. Os jovens, que aparecem raramente no filme, quando falam, fazem-no com a inquietude ou a amargura de Melibeu na primeira bucólica: dulcia linquimus arva... (Abandonemos os nossos queridos campos.) Les Voitures d'eau é a última etapa de um processo emocionante e desesperado: voltar a dar vida ao que agoniza, pela e através da arte; transformar, como dizia Valéry, "aquilo que passa, naquilo que dura". Aí, Perrault reencontra por instinto a essência do cinema, que é, como dizia admiravelmente Bazin, ser "a múmia da transformação". (Dominique Noguez, Le Cinéma)



SESSÃO 10
27 Out. 22h00

Helsinki, Ikuisesti, Peter von Bagh

Eureka de Ernie Gehr, 1974, 16mm, 30'
Helsinki, Ikuisesti [Helsínquia, Para Sempre] de Peter von Bagh, 2008, BetaSP, 75'

"Não vivemos apenas no presente. O passado, com todas as suas memórias, acontecimentos e experiências, está vivo em nós. Muitas vezes o passado é mais poderoso que o presente." (Comentário de abertura de Helsínquia, Para Sempre)

Acerca de EUREKA

Eureka é a refilmagem de um filme notável que mostra Market Street em São Francisco na viragem do século. O filme de origem é um longo plano contínuo filmado da frente de um eléctrico em movimento. […] Reimprimi cada fotograma seis ou oito vezes, aumentei os contrastes e as oscilações da luz. De alguma maneira, o filme original foi transformado, mas espero que este ligeiro processo de mutação me tenha permitido criar o espaço para tornar disponível a obra original, sem demasiada intervenção. Isso era importante para mim, na medida em que me apercebi de que aquilo que fiz, foi em parte semelhante ao trabalho de um arqueólogo ao ressuscitar um velho filme e as sombras e forças de uma outra época.” (Ernie Gehr)

“Gehr: Não tinha um guião. Queria que o original emergisse e que fosse tão 'transparente' quanto possível. Isso era importante. Ao mesmo tempo, o que pode parecer uma contradição, também queria deixar algumas das minhas marcas no filme, incluindo a ideia de que estamos a olhar para um artefacto do tempo, da história humana bem como da história do cinema – mas de uma forma calma, de uma forma discreta. O que tinha de fazer era encontrar um equilíbrio entre o filme original e o meu interesse crescente por este trabalho em particular. Não procurar grandes-planos nem seleccionar detalhes era importante porque precisava de trabalhar com a linguagem cinematográfica daquele período, respeitando-a – estamos a falar de um cinema pré-Griffith. Aprendi noutros trabalhos que fiz, como Still, acerca da poesia e das implicações em jogo quando destacamos um pormenor e acerca do tempo que precisamos para o ver, mas também acerca do modo como uma imagem mais geral parece negar-lhe acesso e engoli-lo em seguida. Também lutei com o ritmo do filme. Por vezes, desejava desacelerar a imagem e outras vezes tinha vontade de fazer o contrário. Senti que isso seria um erro. Seria chamar a atenção para momentos específicos, ou para certos acontecimentos, negligenciando outros. Para mim, o mais importante era manter o movimento numa linha de fronteira entre a imagem fixa e o movimento. Decidi manter um rácio variável que não fosse perceptível, ou quase não o fosse, algures entre os quatro e os oito fotogramas por cada fotograma do original. Se estivermos receptivos ao filme e nos mantivermos sempre com ele, talvez comece a acontecer algo mágico a um quinto do filme. O mundo no ecrã começa a ter vida. O filme parece muito antigo, mas igualmente muito contemporâneo. O tempo torna-se elástico, não reduzido, antes acelerado.” (Conversa entre Scott MacDonald e Ernie Gehr)

Eureka de Ernie Gehr, parte do travelling de um velho filme, provavelmente produzido pela companhia Hale’s Tours: a Hale’s Tours produzia filmes de viagem, muitas vezes filmados a partir de comboios em movimento que o público acompanhava sentado em compartimentos de carruagens recriadas. Gehr fotografou o filme mais uma vez, registando cada fotograma oito vezes – um gesto fílmico de procrastinação, capaz de produzir um tempo solene, como se se tratasse de um Canto. Este material interessante e antigo transforma-se num filme sobre a geografia do passado, sobre as imagens arquivadas, a transição para o grão carregado e a ilusão do movimento. (…) Eureka é a exclamação insistente de Gehr sobre o cinema: “Encontrei!” Encontrou o material. Encontrou o seu título no material. Encontrou um método simples e eficaz para o tornar granulado e quase estático ao mesmo tempo que o exponencia, como numa canção. Ainda mais eficaz e comovente é perceber que Gehr, ao gritar “eureka”, declara que encontrou o seu ofício, a sua arte, o ponto de partida da sua paixão reprimida e do seu contentamento ganho a custo, que podem agora tomar forma e sentido.” (P. Adams Sitney)

Acerca de HELSÍNQUIA, PARA SEMPRE

“Peter von Bagh revive neste filme a tradição do mudo da Sinfonia de uma cidade, mas enquanto que nesses clássicos do género a acção estava confinada a um dia, Helsínquia, Para Sempre, cobre um século com a sua colagem de filmes de actualidade, filmes de ficção, pinturas, música e cantigas. O filme percorre a cidade geograficamente, bairro a bairro, e fá-lo ao mesmo tempo historicamente. As nove décadas da República independente da Finlândia foram conturbados e muitas vezes brutalmente violentas; mas em vez de obtermos uma cronologia informativa, experimentamos as convoluções da História tal como os que a viveram e aqueles que observamos graças ao cinema. Sem cessar passam à nossa frente pessoas reais ou personagens inventadas, nas ruas, nos parques, no cinema, nas marchas, comícios políticos, manifestações de entusiasmo ou protesto. Von Bagh nota com precisão que em todos estes momentos filmados, podemos sempre entrever o rosto de uma criança a olhar para nós - e para o seu futuro. A dominar tudo está a história colectiva dos edifícios: a arquitectura da cidade celebrada pelos seus pintores e realizadores, erigida com orgulho optimista e sujeita a abuso e demolição. O filme de Von Bagh é um acto poético notável. Não observamos apenas a história: nas palavras do comentário, a "História olha-nos a nós". O filme começa com um dos mais extraordinários momentos documentais, visto noutras compilações, mas digno de ser revisto várias vezes: um grande barco quebra o gelo à sua passagem, enquanto um grupo de homens e rapazes, entre eles um de bicicleta e um de motorizada, correm transversalmente à frente do seu avanço inexorável, alegres e destemidos, desafiando o gelo que quebra a pouca distância.” (David Robinson)

“Poucos filmes podem gabar-se de ter uma sequência de abertura tão forte e poucos filmes oferecem um final tão extraordinário. E das duas, acho que o que admiro mais é a fluidez da montagem, a forma de brincar com o tempo de uma maneira que consegue ao mesmo tempo surpreender e ser perfeitamente natural. Esta Helsínquia merece estar entre os grandes "poemas urbanos" e para mim acima de Ruttmann, por exemplo, e por uma razão: se li na sua Berlim a dedicação social e a mestria estética, não senti uma familiaridade com a cidade, com a sua história, os seus fantasmas, tal como encontrei no seu filme. Igualmente, algo que muitos têm tendência a subestimar, mas que é crucial para mim: a música. A sequência do Zeppelin transporta uma beleza assombrosa, próxima da do paquete de Fellini, mas acho que não atingiria esse clímax de emoção, se nesse momento a música não trouxesse essa canção perfeita de melancolia. Da sua escolha de documentos incríveis e a mistura infalível de elementos musicais, montagem e pauta, resulta um filme inesquecível. E como desenvolvi um laço forte com Helsínquia (estranho, se pensar na brevidade da minha visita em 1952), posso dizer que esta é a melhor maneira de celebrar o Ano Novo.“ (Chris Marker)



SESSÃO 11
28 Out. 22h00


Boston Fire e Time and Tide de Peter Hutton

New York Near Sleep for Saskia de Peter Hutton, 1971, 16mm, 10’
Boston Fire de Peter Hutton, 1979, 16mm, 8’
New York Portrait, Chapter II de Peter Hutton, 1979-80, 16mm, 15’
In Titan’s Goblet de Peter Hutton, 1991, 16mm, 10’
Study of a River de Peter Hutton, 1991-1993, 16mm, 16’
Time and Tide de Peter Hutton, 2000, 16mm, 35’

Peter Hutton é um dos grandes cineastas da actualidade, com uma obra que se estende por três décadas e que constitui uma reflexão sobre as qualidades fotográficas da imagem em movimento, do retrato paisagístico pensado na duração de um tempo apenas possível no cinema. Esta sessão inclui filmes de diferentes fases da obra do realizador, com destaque para os que realizou em Nova Iorque e aos estudos pictóricos sobre o rio Hudson que o inscrevem numa genealogia particular de artistas, que da pintura à fotografia, procuraram dar forma a esta paisagem de diversas formas.

Em New York Near Sleep for Saskia, Hutton, nas palavras de Bill Moritz, recorre a “justaposições entusiasmantes de sombra e de movimento, neste filme silencioso e surrealmente poético que examina as mudanças subtis de luz na paisagem de Nova Iorque. […] Hutton impõe ao filme a estética da fotografia fixa e usa como dispositivo estrutural a duração da percepção de um reflexo ligeiro de movimentos e iluminações." New York Portrait II faz parte de uma trilogia dedicada a Nova Iorque e é o resultado de observações diárias da cidade compiladas entre 1980 e 1981. A série sobre o rio Hudson inclui um primeiro filme, In Titan’s Goblet, uma homenagem a Thomas Cole, um dos principais artistas da Escola do Rio Hudson, tendo como referência uma sua pintura de 1833. Study of a River, tal como o nome indica, é um retrato sazonal do rio Hudson composto de observações feitas no Inverno ao longo de dois anos.

“Hutton: O que havia de entusiasmante no regresso à água era toda esta dimensão do movimento: mover-me nos navios através do tempo e do espaço, observá-los a atravessar o enquadramento. O filme sobre o rio abre imensas possibilidades nesse aspecto e apenas porque o rio está em constante movimento. Passei muito tempo a fazer estudos arquitecturais de cidades – na maior parte das vezes acontecia pouco mais do que o voo de uma pomba através do enquadramento ou uma luz ou figura a aparecerem distantes em movimento – mas o rio é infinito. É bom atentar em algo tão profundamente transformador. De cada vez que levo a minha câmara para o rio, ele revela-se de modo diferente, há qualquer coisa que nunca tinha notado: um sentimento diferente do espaço, uma textura diferente da água, uma velocidade diferente do vento.” (Conversa entre Peter Hutton e Scott MacDonald, A Critical Cinema 3: interviews with independent filmmakers)

Acerca de BOSTON FIRE

“O filme encontra a sua grandeza no fumo que se ergue eloquentemente de um incêndio urbano. Bolsas cheias de negrume misturam-se com as fontes de água que jorram em jacto de fora de campo para orquestrar um jogo de elementos primários. A bela textura do fumo, combinada com o isolamento da fonte do incêndio, anula o impacto destrutivo do acontecimento. A câmara, perdida nas imensas nuvens negras, produz imagens meditativas removidas das causas ou das consequências da cena. Os bombeiros, reduzidos, vistos à distância como se fossem silhuetas, olham assombrados, impotentes perante o poder da natureza.” (Millennium Film Journal)

Acerca de NEW YORK PORTRAIT, CHAPTER II

“Os haikus de Hutton são uma sublime destilação do olho cinemático. As limitações impostas – sem cor, sem som, sem movimento (exceptuando um veículo que não é controlado pelo realizador), sem cortes de montagem directos - já que as imagens nascem e morrem a preto – resultam, curiosamente, numa liberdade crucial da imaginação. […] Estas imagens materiais que se evaporam, não ignificam, convocando pelo contrário, panoramas passageiros de um espanto distanciado. Mais que mera fotografia, as justaposições contidas na imagem são explorações fílmicas da compaixão e da tragédia…” (Warren Sonbert)

Acerca de TIME AND TIDE

"A primeira secção do filme é a reprodução de um filme de uma bobine filmado por Billy Bitzer para a Biograph em 1903 e intitulado 'Down the Hudson'. É o retrato do rio Hudson num breve intervalo de tempo, entre Newburgh, Nova Iorque e Yonkers. A segunda secção foi filmada por Peter Hutton entre 1998 e 1999 e regista diversas viagens de subida e descida do rio entre Bayonne, Nova Jersey e Albany, em Nova Iorque. O realizador viajou no arrastão Gotham enquanto empurrava (a subir o rio) e puxava (a descer), o Noel Cutler, um navio carregado com 35.000 barris de gasolina sem chumbo.

“…É (pois) apropriado que Hutton, um dos grandes poetas visuais do retrato do lugar, tenha completado o seu primeiro filme em muitos anos – uma meditação sobre o Rio Hudson. Combinando a luminescência e a contemplação formal dos pintores do Vale de Hudson com as suas preocupações documentais e ambientais, Time and Tide, prolonga o campo panorâmico do retrato anterior Portrait of a River. Depois de décadas de devoção exclusiva ao domínio da película reversível a preto e branco, o filme marca a primeira aventura de Hutton com o negativo cromático." (Mark McElhatten)



SESSÃO 12
30 Out. 22h00

Keep in Touch e Les Antiquités de Rome de Jean-Claude Rousseau

Keep in Touch de Jean-Claude Rousseau, 1987, 16mm (filmado em Super 8), 25’
Les Antiquités de Rome de Jean-Claude Rousseau, 1984-89, 16mm (filmado em Super 8), 105’

"A extrema coerência dos filmes de Jean-Claude Rousseau impressiona o espectador pelo seu todo. Uma janela. Uma paisagem. O cineasta no seu quarto de hotel. O auto-retrato no espelho. A fuga em perspectiva de uma rua ou de uma avenida. As intermitências da luz. É pela eleição de um dado número de constrangimentos formais - um repertório fixo de motivos, a inscrição geográfica, a passagem do interior ao exterior, o princípio musical da variação - que o cineasta institui o local, o lugar, de forma mais exacta, no sentido físico, o de um acontecimento possível, ainda que secreto, mantido na margem, retido, no limite do visível. Esse ritual de preparar o enquadramento, feito com grande precisão, meticuloso e frágil, acaba por produzir em nós, sem que nos apercebamos, e ao vermos o regresso regular dos motivos, um sentimento agradável de suspensão. Aguardamos uma vez mais a visão da janela, a paisagem soprada na luz, o rumor persistente que vem do exterior, o olhar do cineasta surpreso na penumbra, o empoeirar colorido do ar, a entrada em campo do cineasta que vem habitar o lugar do seu enquadramento e o tempo dos planos, bem como tantos outros acontecimentos previsíveis e inesperados. Esta tensão fértil entre a sobriedade do dispositivo, a sua tenuidade, o seu fechamento e a riqueza da sensação produzida, já me tinha impressionado nas duas longas metragens de Jean-Claude Rousseau, Les Antiquités de Rome e La vallée close. Ao revelar-nos o filme à medida que se faz, ao pôr a nú o processo (as bobines em Super 8 são colocadas de uma ponta à outra, sem montagem, com a película em branco que as separa), o cineasta destabiliza a própria matéria do filme, a sua composição por vir, a distância entre o registo em bruto do plano e a sua relação imprevista ou mesmo ao acaso com os planos que lhe sucederão (lembramo-nos da referência à física de Lucrécia em La vallée close e da concepção da montagem expressa por Jean-Claude Rousseau, como um colocar em órbita de átomos desligados que vêm formar uma constelação)." (Érik Bullot, L'Image dans la fenêtre)

Acerca de KEEP IN TOUCH

"Keep in touch explora o tempo da espera. O cineasta está sentado a uma mesa num quarto em Nova Iorque com uma folha branca à sua frente como se fosse escrever uma carta. Acende um candeeiro de mesa, folheia uma revista erótica. Ouvimos diversas mensagens num atendedor telefónico: sussurros pontuados por 'love, love, love'; passando do francês ao inglês, uma voz evoca o regresso a um apartamento: outra, em inglês, surpreendida pelo atendedor, solicita sem convicção um próximo encontro. O filme é acerca desta vaga, acerca do lapso entre o encontro e a espera. O barulho insistente da cidade é perceptível, apenas interrompido pela sirene de uma ambulância. Do enquadramento rígido da janela aos planos fixos das avenidas cobertas de neve, do movimento Browniano dos patinadores à lenta passagem das nuvens sobre o cais, um traçado formal parece ordenar o fluxo dos elementos, prefigurando a composição geométrica de Les Antiquités de Rome. Keep in Touch delineia um caminho solitário, escarpado, circular. Trajecto de solidão na espera de um contacto deixado em suspenso, por resolver, este filme aparenta-se a uma estação, a um sentido de pausa e prece. No fim do filme, o cineasta está outra vez face à sua folha branca. A carta ainda não está escrita. E as três palavras manuscritas que se seguem, "keep in touch", em jeito de genérico, parecem assinar, uma vez mais, uma carta que ficou em branco. Os filme de Jean-Claude Rousseau são, nesta perspectiva e literalmente, missivas ou cartas filmadas." (Érik Bullot, L'Image dans la fenêtre)

Acerca de LES ANTIQUITÉS DE ROME

Depois de Venise n’existe pas e de Keep in touch, Jean-Claude Rousseau passou às longas-metragens. Esta mudança de formato fez-se de acordo com um modo operativo particular relacionado com o tipo de construção das curtas e médias metragens. Em Rousseau, a unidade elementar é sempre constituída pela bobine de Super 8. Um filme organiza-se por aproximação e acorde, no sentido musical, entre diferentes bobines. “Não há montagem. Há um juntar de pontas, mas cada bobine de Super 8 permanece integral, intacta de uma ponta à outra. Muitas vezes não surge na ordem por que foi filmada o que não diz respeito às que ainda restam. (…) Quando duas bobines se completam, não podemos mais separá-las ou mexer nisso”. Esse jogo de lego unitário forma a estrutura evidente dos primeiros filmes. Na sua primeira longa, Les Antiquités de Rome, esta arquitectura desdobra-se numa découpage em várias partes – sete como os dias da semana ou as colinas de Roma. Esta découpage conduz a lógica anterior a um próximo nível. Cada sequência acorda de novo com a que se lhe segue tal como com a que lhe precedeu. As longas metragens de Rousseau são organismos mais complexos do que as suas curtas mas respeitam as mesmas leis biológicas. Ganham apenas em espessura temporal (são necessárias mais viagens, efectuadas em diversos anos) e em extensão espacial (mais quartos em mais bairros). Les Antiquités de Rome, terminado em 1989, testemunha o percurso percorrido depois da pequena música de câmara que foi Venise n’existe pas, constituindo uma espécie de complemento orquestral. A questão do cliché é retomada com uma força renovada. O conjunto do filme surge de facto organizado à maneira de um guia turístico, em função de vistas célebres – “o Coliseu”, “o Arco de Constantino”, “o Circo Máximo”, etc. Mas onde Venise n’existe pas permanecia ainda na clausura protectora do quarto e procurava opor um modo de representação a outro, Les Antiquités de Rome passa incessantemente do interior ao exterior, propondo ao espectador um contrato mais complexo e subtil. Em cinco anos, Rousseau ganhou a confiança suficiente nos seus próprios meios para acolher o mundo tal como este se dá a ver, sabendo entretanto contrariar a perspectiva habitual. À cabeça, a citação de Joachim du Bellay indica as regras desta visão paradoxal: Nouveau venu qui cherches Rome en Rome / Et rien de Rome en Rome s’aperçois. Veneza não existia e Roma não pára de desapontar. O princípio destas decepções sucessivas não é claramente formulado, mas deixa adivinhar-se facilmente através dos primeiros capítulos. Enquadradas pelo cineasta, “a Rotunda”, “a Pirâmide” e o “Fórum de Trajano” transformam-se um a um num círculo, num triângulo e num quadrado. Se desaparecessem enquanto monumentos também desapareceriam como formas geométricas simples. Como a Veneza dos vedute deu lugar a uma outra Veneza vertical e lacunar, a Roma marmórea torna-se aqui numa nova Roma composta de linhas entrecruzadas. “É uma relação entre as linhas que faz com que ao mesmo tempo aquilo que vemos se torne plano, não estando já de todo na perspectiva e provocando uma profundidade sem limites.” Como contraponto a este trabalho exterior de depuração geométrica, as cenas interiores não cessam de se multiplicar até ao virtuosismo dos planos do espelho, que funcionam à vez como portas falsas e como verdadeiras aberturas. Em Rousseau, os trompe-l’oeil servem sobretudo para esclarecer o olhar, impondo-lhe a superfície do ecrã como única realidade. Em Les Antiquités de Rome, espelhos e linhas, interior e exterior, conjuram o nivelar generalizado do mundo, “necessário à passagem”. Mas essa passagem não se efectua sozinha. Pela primeira vez há um encontro. É o que indica, à partida, a narração repetida em loop pela voz do realizador: “Começou a chover, era como se fosse o fim do dia, o céu obscurecido, entrámos na igreja e estávamos no centro da cidade… Não era uma igreja e através da cúpula aberta, esburacada, caía a chuva.” E no entanto isso tarda a entrar em campo. Entretanto, de costas voltadas, no quadrado negro do Fórum de Trajano, desaparece da imagem, seguido logo após pelo realizador. Esta aparição furtiva não vale apenas como uma ilustração literal da tese cara a Rousseau do enquadramento-janela. (“Entrar no enquadramento é fazer a travessia. É mais desaparecer do que aparecer.”) Prefigura igualmente a saída do filme deste recém-chegado. Um dos traços específicos das longas metragens de Rousseau é que não se constroem directamente sobre um fundo de ausência, mas através de um esquema de perda, mais dramático. Quando o cineasta retoma a palavra, esta perda há muito efectiva no ecrã, formula-se claramente: “Páras em frente à estátua. A tua solidão é absoluta. A pedra imaginava o homem. Regressas parecido contigo mesmo.” E no entanto, em Les Antiquités de Rome há algo que não está ainda completamente resolvido no que diz respeito a esse indivíduo sobre-numerário e quanto à sua inserção fugaz no curso dos planos. Uma cena numa casa de banho, descobrindo um torso desnudado e um rápido perfil é assim retomada tardiamente em aceleração numa sequência de “sonho” que constitui um subcapítulo de estatuto incerto, como se o cineasta tivesse sentido a necessidade de desconstruir a estranheza plena transportada por este corpo imprevisto. Há em Les Antiquités de Rome uma fuga fantástica para tentar encontrar a resposta visual adequada à figura demoníaca do outro. Este salto final difere em profundidade do equilíbrio a que nos habituou o realizador, a essa emocionante “libertação dos elementos no limite do enquadramento”. É mais oposta do que concordante com o resto do filme. Seria necessário esperar mais seis anos e uma segunda longa metragem para que Rousseau encontrasse um novo sistema capaz de integrar plenamente a presença e a perda da pessoa amada. (Patrice Blouin, La déconvenue. Notes sur l’oeuvre de Jean-Claude Rousseau)


Programação: Ricardo Matos Cabo